sábado, 31 de dezembro de 2016

RESENHAS AO LÉU ESCOLHE OS DEZ MELHORES LIVROS DE 2016 (por Chico Marques)

1. COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS
(Elvira Vigna - Cia das Letras)
Aos 69 anos de idade, com 10 romances publicados, Elvira Vigna está de volta neste Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, que passeia pelo universo da prostituição em Copacabana como pretexto para um mergulho profundo nas vicissitudes da vida urbana. Seus personagens são desprovidos de glamour. São seres urbanos com vidas devastadas tanto em termos afetivos quanto em termos emocionais e pessoais, irremediavelmente presos a hábitos que são daninhos a eles próprios, mas sem os quais a vida deles não consegue fazer sentido. Estamos diante de um grande romance que aborda, antes de mais nada, a solidão e o desalento, e que não cai em momento algum em julgamentos morais ou psicologices.
2. ESTAÇÃO ATOCHA
(Ben Lerner - Rádio Londres)
Temos aqui um protagonista que faz coisas incríveis e excepcionais, age de forma imprevisível, talvez até possa ser classificado como um herói do cotidiano, mas se considera um impostor. Adam Gordon é um bolsista de pesquisa em Madri, na Espanha. Seu projeto deveria ser estudar a influência da guerra na literatura e, a partir daí, compor um poema longo sobre o momento atual. Mas, ao invés disso, Adam passa seus dias passeando pela capital espanhola, ou em seu apartamento vendo a luz passar pela claraboia, se chapando de haxixe. Vez ou outra, escreve um poema, mas nada muito a sério. Envolve-se com duas mulheres ao mesmo tempo, mas sem se comprometer com nenhuma delas. É fascinado pelo êxtase que certas pessoas atingem diante da arte. Trocando em miúdos: Adam é um poeta no sentido mais amplo do termo -- mas se considera incompatível com a arte, e não consegue produzir sua própria arte. Estação Atocha é talvez o romance de estreia mais intenso que li nos últimos anos. Guardem bem este nome: Ben Lerner. Vocês vão ouvir falar dele um bocado nos próximos anos.
3. A VIDA NÃO TEM CURA
(Marcelo Mirisola - Editora 34)
Situado na década de 1960, este sétimo romance do incansável Marcelo Mirisola aborda com alguma truculência e muito bom humor assuntos delicados como violência contra a mulher e relacionamentos com travestis. Seu narrador, coitado, foi obrigado pelas circunstâncias a encarar a vida adulta como Professor de Matemática depois de viver uma adolescência idílica. Então, é feito de gato e sapato por sua musa, a mulher-belzebu Natasha -- com quem foi casado e tem uma filha --, e acaba envolvido com o tráfico de meninos travestis e com o submundo das Igrejas neoevangélicas. Duvido que a essa altura do campeonato você não tenha ficado ao menos curioso para conhecer um pouco mais dessa nova aventura literária de Mr. Mirisola. Eu sou suspeito para recomendar A Vida Não tem Cura, pois conheço o autor há muitos e muitos anos. Mas... dane-se! Recomendo mesmo assim, pois Mirisola é um ótimo escritor com muitos desafetos e merece ter mais leitores do que possui atualmente. 
4. TIRZA
(Armon Grunberg - Rádio Londres)
Os brasileiros já conheciam Armon Grunberg de dois romances lançados tempos atrás por aqui pela Editora Globo pouco depois da virada do século: Amsterdam Blues e Dor Fantasma. De uns anos para cá, ele mudou radicalmente seu approach literário e mergulhou de cabeça numa espécie de auto-ficção. Tirza é um exemplo disso. É uma espécie de tragédia em três atos, em que as muitas falhas de caráter do protagonista são
castigadas, uma a uma, até que só reste a ele o amor que dedica à filha, Tirza, que começa a desabrochar, e planeja, logo após sua formatura do colegial, fazer uma longa viagem à África com seu namorado marroquino. O relato, narrado bem próximo ao ponto de vista do pai, inicia-se no dia da festa de formatura. Para piorar, sua esposa ressurge inesperadamente após ter abandonado a família sem uma palavra, três anos antes. E por aí vai. Publicado originalmente dez anos atrás, só agora Tirza ganhou uma tradução no Brasil. Foi
considerado em uma pesquisa entre críticos, acadêmicos e escritores europeus o romance europeu mais importante do século 21 escrito até agora. Mais um bom motivo para você conhecê-lo.
5. BUTCHER'S CROSSING
(John Williams - Rádio Londres)
Na década de 1870, Will Andrews, um jovem de 23 anos, desiste de Harvard e resolve sair da casa paterna em Boston, Massachusetts, rumo ao Oeste em busca de uma forma mais autêntica de viver. Vai parar em Butcher’s Crossing, um pequeno povoado solitário perdido na vastidão da pradaria do Kansas e habitado por uma pequena comunidade de negociantes de peles e rudes caçadores de búfalos. Faz amizade com um caçador e, junto com outros três homens, monta uma expedição de caça a búfalos nas Rochosas do Colorado. Marcada por desafios extremos – sede, frio, calor, exaustão – e por um isolamento quase total, essa caçada vai durar vários meses e se tornar uma árdua aventura na natureza selvagem. Uma excelente introdução ao universo literário do ex-aviador John Williams, que em apenas quatro romances conseguiu ser aclamado como um dos romancistas americanos mais importantes do Século XX.
6. SIMPATIA PELO DEMÔNIO
(Bernardo Carvalho - Cia das Letras)
Bernardo Carvalho optou por surpreender pra valer seus leitores em seu 12°romance. Rato, o protagonista de Simpatia Pelo Demônio, atua há cerca de trinta anos como agente humanitário em zonas de conflito. Sua tese, Tratado Sobre a Violência, facilitou a obtenção de um posto em uma importante organização com sede em Nova York. Aos cinquenta e cinco, Rato é escalado para uma missão com enorme potencial suicida: é designado para levar o dinheiro para resgatar um jovem refém de um grupo extremista islâmico. Enquanto aguarda o contato com os terroristas, revive um romance de juventude que teve com um estudante mexicano em Berlin. Fortemente influenciado por George Bataille, com erotismo e violência se comunicando continuamente, tudo é ao mesmo tempo o seu contrário em Simpatia Pelo Demônio. Se Rato morrer na missão, terá sido pela violência, mas também por amor. Preparem-se para conhecer um dos romances mais inusitados e indigestos deste ano.
7. O TRIBUNAL DE QUINTA-FEIRA
(Michel Laub - Cia das Letras)
Um publicitário faz confissões por e-mail ao melhor amigo. Os textos falam de sexo e amor, casamento e traição, usando termos e piadas ofensivas que contam a história de uma longa crise pessoal. Quando a ex-mulher do protagonista faz cópias das mensagens e as distribui, tem início o escândalo que é o centro deste romance explosivo. O fio condutor da história, que une o destino dos personagens diante de um tribunal inusitado, são os reflexos tardios e ainda hoje incômodos da epidemia da aids, e o que está em jogo são os limites do que entendemos por tolerância — mas para chegarmos a eles é preciso ir além do que seria uma literatura “correta” ao tratar de homofobia, assédio, violência, empatia, liberdade e solidariedade. Este novo romance de Michel Laub é, sem dúvida, o grande destaque de uma carreira bem consolidada. Aqui, ele assume alguns riscos mais intensos, e prova que a força de sua escrita é proporcional à honestidade e à insolência, mas também à perspicácia do narrador.
8. ENCLAUSURADO
(Ian McEwan - Cia das Letras)
McEwan surpreendeu a todos utilizando um feto como narrador deste romance curto. Obviamente, não se trata de um feto qualquer. Pelos nomes de seu pai, sua mãe e do seu tio (que é amante de sua mãe), logo identificamos os personagens centrais de Hamlet, de William Shakespeare. Aprisionado na barriga da mãe, ele acompanha os planos da mãe e do tio para matar seu pai sem poder fazer coisa alguma para evitar. Mas não se engane: apesar dos elementos trágicos que circundam a história toda, Enclausurado é divertidíssimo. O feto escuta a Rádio BBC o dia inteiro e tem opiniões formadas sobre os Conflitos no Oriente Médio e uma infinidade de outros assuntos. Não é o melhor trabalho de McEwan. Mas qualquer um que ouse criar um narrador tão inusitado quanto este aqui, merece ser lido por muitos.
9. OS FATOS
(Philip Roth - Cia das Letras)
Quando Philip Roth decidiu se aposentar e não escrever mais 5 anos atrás, ele se despediu com esse despretencioso livro autobiográfico, onde se revela como um romancista que tentou, à sua maneira, remodelar a maneira como encaramos a ficção. Aqui ficamos conhecendo um pouco melhor as conexões entre sua arte e sua vida. Em Os Fatos, Roth foca em cinco episódios de sua trajetória: sua infância em Newark, sua formação universitária, seu envolvimento com a pessoa mais ríspida que conheceu, seu embate com a comunidade judaica por conta de seu livro Adeus, Columbus e a descoberta do lado adormecido de seu talento que o levou a escrever O Complexo de PortnoyOs Fatos fala pouco de Roth dos Anos 1970 para cá, e encerra com uma autocrítica muito divertida a suas habilidades discutíveis como biógrafo de si mesmo. Não é um livro fundamental na obra de Roth. Mas é bem bacana, e merece ser lido.
10. PUREZA
(Jonathan Franzen - Cia das Letras)
Pip Tyler não sabe ao certo quem é. Só sabe que seu nome verdadeiro é Purity, que está cheia de dívidas, dividindo um apartamento com um grupo de anarquistas e em litígio com sua mãe. Não sabe quem é seu pai. Não entende porque sua mãe sempre a forçou a viver reclusa. Adoraria ter uma vida normal e um nome que ao menos não fosse tão bandeiroso quanto esse que sua mãe lhe deu: Purity. Um acaso do destino acaba trazendo-a para a América do Sul, para fazer estágio numa organização que contrabandeia segredos do mundo inteiro. E é a partir daí ela começa a esboçar um rumo diferenciado para sua vida. Pureza, este mais recente calhamaço de Jonathan Franzen, é uma história sobre idealismo juvenil, lealdade e assassinato, em sintonia fina com os tempos em que vivemos. Neste romance sobre enigmas familiares, a internet é retratada como vitrine de segredos públicos e particulares, e Franzen analisa os prós e os contras do uso que se faz hoje da Web, além de investigar o que, para ele -- e para muitos de nós também -- é a grande questão filosófica desde novo século: o fim da privacidade com a chegada das redes sociais.  Detalhe: faz isso de uma maneira muito incisiva e peculiar, como nenhum outro romancista -- de qualquer nacionalidade -- fez até agora.